quinta-feira, 27 de agosto de 2009

Trem noturno para Lisboa

Cada um de nós é vários, é muitos, é uma prolixidade de si mesmos. Por isso aquele que despreza o ambiente não é o mesmo que dele se alegra ou padece. Na vasta colônia do nosso ser há gente de muitas espécies. Pensando e sentindo diferentemente.
Fernando Pessoa, Livro do desassossego, anotações 30/12/1932.

Gregorius pegou o livro e leu: AMADEU INÁCIO DE ALMEIDA PRADO, UM OURIVES DAS PALAVRAS! LISBOA 1975.
O livreiro, que havia se aproximado, lançou um olhar sobre o livro e pronunciou o título. Gregorius só escutou uma seqüência de sons chiados; as vogais engolidas, mal audíveis, pareciam apenas um pretexto para que se pudesse repetir sempre de novo aquele “ch” no final.
- O senhor fala português?
Gregorius fez que não com a cabeça.
- Um ourives das palavras, não é belo esse título?
- Calmo e elegante. Como prata fosca. Por favor, poderia repeti-lo em português?
O livreiro repetiu as palavras. Era evidente que, para além das palavras, ele se deliciava com a sua sonoridade aveludada. Gregorius abriu o livro e folheou-o até o início do texto. Entregou-o ao homem que lhe lançou um olhar levemente surpreso, porém simpático, e começou a ler. Gregorius cerrou os olhos. Depois de algumas frases, o livreiro parou.
- Quer que traduza?
Gregorius fez que sim. Em seguida, escutou frases que desencadearam nele um efeito atordoante, pois parecia que tinham sido escrito só para ele, mas não só isso, especialmente para ele naquela manhã em que tudo havia mudado.

De mil experiências que fazemos, no máximo conseguimos traduzir um em palavras, e mesmo assim de forma fortuita e sem merecimento de cuidado. Entre todas as experiências mudas, permanecem ocultas aquelas que, imperceptivelmente, dão às nossas vidas a sua forma, o seu colorido e a sua melodia. Quando depois, tal qual arqueólogos da alma, nós nos voltamos para esses tesouros, descobrimos quão desconcertantes eles são. O objeto da observação se recusa a ficar imóvel, as palavras deslizam para fora da vivência e o que resta no papel no final não passa de um monte de contradições. Durante muito tempo acreditei que isso era um defeito, algo que deve ser vencido. Hoje penso que é diferente, e que o reconhecimento de tamanho desconcerto é a via régia para compreender essas experiências ao mesmo tempo conhecidas e enigmáticas. Tudo isso parece estranho, eu sei, até mesmo extravagante. Mas desde que passei a ver as coisas assim, tenho a sensação de, pela primeira vez, estar atento e lúcido.

- Isto é a introdução – disse o livreiro, começando a folhear.
- E agora, parece, ele começa a tentar escavar as experiências ocultas, parágrafo após parágrafo. Tornar-se o seu próprio arqueólogo. Há parágrafos de várias páginas, outros muitos breves. Eis aqui um, por exemplo, que consiste de uma única frase.
Ele traduziu:

Se é verdade que apenas podemos viver uma pequena parte daquilo que há dentro de nós, o que acontece com o resto?

Trecho das páginas 24 e 25 do Livro Trem noturno para Lisboa, Pascal Mercier, pseudônimo de Peter Bieri(Direitos exclusivos de publicação em língua portuguesa somente para o Brasil adquiridos pela Editora Record Ltda)

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As mudanças são necessárias, claro, mas não se pode deixar de sentir um pouco de nostalgia - Afinal, ela é parte de nossa história. Sem essas lembranças é como se não existisse passado...

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