sábado, 15 de agosto de 2009

Se eu fosse eu...

Clarice Lispector escreveu em uma crônica com o título acima para o Jornal do Brasil, em 1968, em que ela falava sobre a grandeza de entrar no nosso território desconhecido, e o que ela faria caso ela fosse ela mesma. Como tudo que Clarice escrevia, é uma idéia perturbadora saber que nosso comportamento é condicionado e que nem sempre fazemos o que o nosso eu manda. Se eu fosse eu... puxa, dá até medo.
Se eu fosse eu, reagiria. Diria exatamente o que eu penso e sinto quando alguém me agride sem perceber. Deixaria minhas lágrimas rolarem livremente não regularia o tom de voz, nem pensaria duas vezes antes de bronquear, mesmo correndo o risco de cometer uma injustiça, mesmo que mexicanizasse a cena. Reclamaria em vez de sofrer quieta no meu canto.
Se eu fosse eu, não providenciaria almoço nem jantar, comeria quando tivesse fome, dormiria quando tivesse sono, e isso seria lá pelas nove da noite, quando cai a minha chave-geral. Acordaria então às cinco, com toda a energia do mundo, para recepcionar o sol com um sorriso mais iluminado que o dele, e caminharia a cidade inteira, até perder o rumo de casa, até encontrar o rumo de dentro.
Se eu fosse eu, riria abertamente do que eu acho mais graça: pessoas prepotentes, que pensam saber mais que os outros, e encorajaria os que pensam que sabem pouco, e sabem tanto. Eu faço isso às vezes, mas não faço sempre, então nem sempre sou eu.
Se eu fosse eu, trocaria todos os meus compromissos profissionais por cinema e livro, livro e cinema. Mas quem os pagaria pra mim? Pensando bem, se eu fosse eu, seria como eu sou: trabalharia, reservando um tempo menor para cinema e livro, livro e cinema, mas pagando-os do meu bolso.
Se eu fosse eu, não evitaria dizer palavrões, não iria em missa de sétimo dia, não sentiria fingir certas emoções que não sinto, nem fingiria não sentir certas raivas que disfarço, certos soluços que engulo. Se eu fosse eu, precisaria ser sozinha.
Se eu fosse eu, agiria como gata no cio, diria muito mais sim.
Se eu fosse eu, falaria muito, muito menos.
E menos mal que sou eu na maior parte do dia e da noite, que sou eu mesma quando escrevo e choro, quando rio e sonho, quando ofendo e peço perdão. Sou eu mesmo quando acerto e erro, e faço isso no espaço de poucas horas, mal consigo me acompanhar. E ainda bem que nem sempre sou eu. Se eu fosse indecentemente eu, aquele eu que refuta a Bíblia e a primeira comunhão, aquele eu que não organiza a sua trajetória e se deixa levar pela intuição, aquele eu que prescinde de qualquer um, de qualquer sim e não, enlouqueceria, eu.
Do livro NON-STOP Crônicas do Cotidiano, da escritora gaúcha Martha Medeiros

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