sábado, 29 de agosto de 2009

A palavra foi feita para dizer...

"Deve-se escrever da mesma maneira como as lavadeiras lá de Alagoas fazem o seu ofício.
Elas começam com uma primeira lavada, molham a roupa suja na beira da lagoa ou do riacho, torcem o pano, molham-no novamente, voltam a torcer. Colocam o anil, ensaboam e torce uma, duas vezes. Depois enxáguam, dão mais uma molhada, agora jogando a água com a mão. Batem o pano na laje ou na pedra limpa, e dão mais uma torcida e mais outra, torcem até não pingar do pano uma só gota. Somente depois de feito tudo isso é que elas dependuram a roupa lavada na corda ou no varal, para secar. Pois quem se mete a escrever devia fazer a mesma coisa. A palavra não foi feita para enfeitar, brilhar como ouro falso; a palavra foi feita para dizer."

Graciliano Ramos

quinta-feira, 27 de agosto de 2009

Trem noturno para Lisboa

Cada um de nós é vários, é muitos, é uma prolixidade de si mesmos. Por isso aquele que despreza o ambiente não é o mesmo que dele se alegra ou padece. Na vasta colônia do nosso ser há gente de muitas espécies. Pensando e sentindo diferentemente.
Fernando Pessoa, Livro do desassossego, anotações 30/12/1932.

Gregorius pegou o livro e leu: AMADEU INÁCIO DE ALMEIDA PRADO, UM OURIVES DAS PALAVRAS! LISBOA 1975.
O livreiro, que havia se aproximado, lançou um olhar sobre o livro e pronunciou o título. Gregorius só escutou uma seqüência de sons chiados; as vogais engolidas, mal audíveis, pareciam apenas um pretexto para que se pudesse repetir sempre de novo aquele “ch” no final.
- O senhor fala português?
Gregorius fez que não com a cabeça.
- Um ourives das palavras, não é belo esse título?
- Calmo e elegante. Como prata fosca. Por favor, poderia repeti-lo em português?
O livreiro repetiu as palavras. Era evidente que, para além das palavras, ele se deliciava com a sua sonoridade aveludada. Gregorius abriu o livro e folheou-o até o início do texto. Entregou-o ao homem que lhe lançou um olhar levemente surpreso, porém simpático, e começou a ler. Gregorius cerrou os olhos. Depois de algumas frases, o livreiro parou.
- Quer que traduza?
Gregorius fez que sim. Em seguida, escutou frases que desencadearam nele um efeito atordoante, pois parecia que tinham sido escrito só para ele, mas não só isso, especialmente para ele naquela manhã em que tudo havia mudado.

De mil experiências que fazemos, no máximo conseguimos traduzir um em palavras, e mesmo assim de forma fortuita e sem merecimento de cuidado. Entre todas as experiências mudas, permanecem ocultas aquelas que, imperceptivelmente, dão às nossas vidas a sua forma, o seu colorido e a sua melodia. Quando depois, tal qual arqueólogos da alma, nós nos voltamos para esses tesouros, descobrimos quão desconcertantes eles são. O objeto da observação se recusa a ficar imóvel, as palavras deslizam para fora da vivência e o que resta no papel no final não passa de um monte de contradições. Durante muito tempo acreditei que isso era um defeito, algo que deve ser vencido. Hoje penso que é diferente, e que o reconhecimento de tamanho desconcerto é a via régia para compreender essas experiências ao mesmo tempo conhecidas e enigmáticas. Tudo isso parece estranho, eu sei, até mesmo extravagante. Mas desde que passei a ver as coisas assim, tenho a sensação de, pela primeira vez, estar atento e lúcido.

- Isto é a introdução – disse o livreiro, começando a folhear.
- E agora, parece, ele começa a tentar escavar as experiências ocultas, parágrafo após parágrafo. Tornar-se o seu próprio arqueólogo. Há parágrafos de várias páginas, outros muitos breves. Eis aqui um, por exemplo, que consiste de uma única frase.
Ele traduziu:

Se é verdade que apenas podemos viver uma pequena parte daquilo que há dentro de nós, o que acontece com o resto?

Trecho das páginas 24 e 25 do Livro Trem noturno para Lisboa, Pascal Mercier, pseudônimo de Peter Bieri(Direitos exclusivos de publicação em língua portuguesa somente para o Brasil adquiridos pela Editora Record Ltda)

segunda-feira, 17 de agosto de 2009

Sonhei com o escritor...

Ler é um dos meus maiores prazeres da vida, não saio de casa sem a companhia de um livro.
Dentre os formidáveis escritores que já li, destaco o genial Rubem Alves o meu preferido, talvez seja pela maneira observadora, simples e inteligente que ele vê e escreve sobre a Vida.
Uma noite dessas sonhei com o Rubem, e no meu sonho eu buscava o sinônimo de uma palavra, não sei escrever que palavra era, só sei dizer que graças a essa palavra que não sei qual era, eu consegui me aproximar ainda mais desse sábio da vida e das palavras.
No sonho eu ligo para o número do telefone do escritor para pedir ajuda, contei a ele da minha necessidade, só que para minha surpresa e não conseguia escutá-lo, mesmo assim continuei falando com entusiasmo, alegria e satisfação que era em conhecê-lo.
Talvez numa noite dessas , enquanto estiver dormindo e sonhar espero dessa vez ouvi-lo e se na luz do sol eu encontrá-lo e poder tomar um simples café na sua companhia , escutarei se a emoção deixar e terei um dos meus sonhos realizados.
Valeu meu caro amigo Rubem é bom viver nessa terra e saber que você existe. E não é simplesmente um sonho.

sábado, 15 de agosto de 2009

Se eu fosse eu...

Clarice Lispector escreveu em uma crônica com o título acima para o Jornal do Brasil, em 1968, em que ela falava sobre a grandeza de entrar no nosso território desconhecido, e o que ela faria caso ela fosse ela mesma. Como tudo que Clarice escrevia, é uma idéia perturbadora saber que nosso comportamento é condicionado e que nem sempre fazemos o que o nosso eu manda. Se eu fosse eu... puxa, dá até medo.
Se eu fosse eu, reagiria. Diria exatamente o que eu penso e sinto quando alguém me agride sem perceber. Deixaria minhas lágrimas rolarem livremente não regularia o tom de voz, nem pensaria duas vezes antes de bronquear, mesmo correndo o risco de cometer uma injustiça, mesmo que mexicanizasse a cena. Reclamaria em vez de sofrer quieta no meu canto.
Se eu fosse eu, não providenciaria almoço nem jantar, comeria quando tivesse fome, dormiria quando tivesse sono, e isso seria lá pelas nove da noite, quando cai a minha chave-geral. Acordaria então às cinco, com toda a energia do mundo, para recepcionar o sol com um sorriso mais iluminado que o dele, e caminharia a cidade inteira, até perder o rumo de casa, até encontrar o rumo de dentro.
Se eu fosse eu, riria abertamente do que eu acho mais graça: pessoas prepotentes, que pensam saber mais que os outros, e encorajaria os que pensam que sabem pouco, e sabem tanto. Eu faço isso às vezes, mas não faço sempre, então nem sempre sou eu.
Se eu fosse eu, trocaria todos os meus compromissos profissionais por cinema e livro, livro e cinema. Mas quem os pagaria pra mim? Pensando bem, se eu fosse eu, seria como eu sou: trabalharia, reservando um tempo menor para cinema e livro, livro e cinema, mas pagando-os do meu bolso.
Se eu fosse eu, não evitaria dizer palavrões, não iria em missa de sétimo dia, não sentiria fingir certas emoções que não sinto, nem fingiria não sentir certas raivas que disfarço, certos soluços que engulo. Se eu fosse eu, precisaria ser sozinha.
Se eu fosse eu, agiria como gata no cio, diria muito mais sim.
Se eu fosse eu, falaria muito, muito menos.
E menos mal que sou eu na maior parte do dia e da noite, que sou eu mesma quando escrevo e choro, quando rio e sonho, quando ofendo e peço perdão. Sou eu mesmo quando acerto e erro, e faço isso no espaço de poucas horas, mal consigo me acompanhar. E ainda bem que nem sempre sou eu. Se eu fosse indecentemente eu, aquele eu que refuta a Bíblia e a primeira comunhão, aquele eu que não organiza a sua trajetória e se deixa levar pela intuição, aquele eu que prescinde de qualquer um, de qualquer sim e não, enlouqueceria, eu.
Do livro NON-STOP Crônicas do Cotidiano, da escritora gaúcha Martha Medeiros

Pedaços do caminho