sexta-feira, 31 de julho de 2009

O livro é um objeto mágico...

O livro é um objeto mágico, sempre disposto a dialogar com você no momento em que você o abre e que respeitosamente silencia no momento em que você o fecha. O livro conduz a um diálogo entre você e o autor e de você com você mesmo. Leva à reflexão e a um aprofundamento do pensamento, retirando-nos temporariamente do entorpecimento que o cotidiano pode impor.
Ainda se lê pouco em nosso país. Segundo a pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, realizada em 2007 pelo Ibope Inteligência, a nossa média de leitura é de 4,7 livros por ano para cada habitante. Deste total de 4,7 livros, 3,4 são indicados pelas escolas freqüentadas por 60 milhões de brasileiros e apenas 1,3 são lidos sem indicação da escola. Ou seja, nossos compatriotas quando estão na escola raramente leem algo não solicitado pela instituição e muitos deles, ao sair da escola, simplesmente param de ler.
Isto significa que muitos brasileiros, na verdade milhões, atravessam anos, às vezes toda uma vida, sem nada ler a não ser bulas de remédios ou alguma notícia sensacionalista na internet.
É preciso mudar isto. Se quisermos uma plena democracia, precisaremos ler mais. Afinal democracia pressupõe escolha. E escolha consciente depende de conhecimento. Sem isso haveremos de escolher sempre de modo muito precário.
Não há substituto eficaz para a leitura. Aquilo que alguns chamam de “escola da vida”, ou seja, o conjunto de experiências acumuladas ao longo da existência, tem valor inestimável, mas de modo algum isso substitui a leitura. No mundo crescentemente complexo em que vivemos, a leitura é indispensável para o bem viver. É um caminho para o crescimento das pessoas e da nação; para a qualidade de vida e para a justiça social.
O hábito de ler é desenvolvido como qualquer outro, ou seja, por repetição. Isto pode ser feito com a ajuda da escola, da família ou sozinho – e em qualquer idade. Quase todos os livros que li me tornaram melhor e alguns transformaram profundamente a minha vida. Digo, sem hesitação, que a leitura foi decisiva para os resultados que alcancei.
“Os verdadeiros analfabetos são os que aprenderam a ler e não leem” escreveu o poeta Mario Quintana. Cada um de nós pode contribuir para um Brasil que lê mais, que sabe mais, que vota melhor e que vive melhor. Evidentemente o primeiro passo é o compromisso com a sua própria leitura. Leia e leia publicamente para sensibilizar as pessoas através do mágico poder do exemplo. Não saia de casa sem um livro. Leia na fila do banco, no ponto de ônibus, no ônibus, na praia ou em qualquer outro lugar, mais leia! Se não gostar do primeiro livro, pegue outro, mas leia!
Não use ou acredite nas desculpas de que os livros são caros, ou de que falta tempo. São pretextos e você sabe disto. Existem livros baratos, sebos, bibliotecas públicas e pessoas dispostas a emprestar. Quanto ao tempo, sempre teremos tempo para aquilo que julgamos importante. Portanto, arregace as mangas e leia! Temos todo um país a construir e como nos disse outro grande brasileiro, Monteiro Lobato “Um país se constrói com homens e livros.”

Alan Schlup Sant’Anna é escritor e palestrante. É autor de Disciplina: o caminho da vitória e Equilíbrio em um mundo difícil.

quarta-feira, 22 de julho de 2009

O diabo e a política

Sempre que leio os jornais, lembro de uma historinha que nem sei mais quem me contou. Naquela aldeia todos roubavam todos, matava-se, fornicava-se, jurava-se em falso, todos caluniavam todos. Horrorizado com os baixos costumes, o frade da aldeia resolveu dar o fora, pegou as sandálias, o bordão e se mandou.

Pouco adiante, já fora dos muros da aldeia, encontrou o Diabo encostado numa árvore, chapéu de palha cobrindo os seus chifres. Tomava água de coco por um canudinho, na mais completa sombra e água fresca desde que se revoltara contra o senhor, no início dos tempos.

O frade ficou admirado e interpelou o Diabo:

- O que está fazendo aí nesta boa vida? Eu sempre pensei que você estaria lá na aldeia, infernizando a vida dos outros. Tudo de ruim que anda por lá era obra sua – assim eu pensava até agora. Vejo que estava enganado. Você não quer nada com o trabalho. Além de Diabo, você é vagabundo!

Sem pressa, acabando de tomar o seu coco pelo canudinho, o Diabo olhou para o frade com pena:

- Para quê? Trabalho desde o início dos tempos para desgraçar os homens e confesso que ando cansado. Mas não tinha outro jeito. Obrigação é obrigação, sempre procurei dar conta do recado. Mas agora, lá na aldeia, o pessoal resolveu se politizar. É partido pra lá, partido pra cá, todos têm razão, denúncias, inquéritos, invocam a ética, a transparência, é um pega-pra-capar generalizado, eu estava sobrando, não precisavam mais de mim para serem o que são, viverem no inferno em que vivem.

Jogou o coco fora e botou o charuto na boca. Não precisou de fósforo, bastou dar uma baforada e de suas entranhas saiu fogo que acendeu o charuto:

Tem sido assim em todas as aldeias. Quando entra a política eu dou o fora, não precisam mais de mim.

Crônica do romancista e cronista Carlos Heitor Cony, publicado em 29/11/2005 na FolhaOnline.

domingo, 12 de julho de 2009

domingo, 5 de julho de 2009

Sobre deuses e rezas...

Perdida no meio dos viajantes que enchiam o aeroporto, ela uma figura destoante. A roupa largada, os passos pesados, uma sacola de plástico pendurada numa das mãos – esses sinais diziam que ela não ligava para a sua condição de mulher: não se importava com o ser bonita. Pensei mesmo que se tratava de uma freira. Seu comportamento era curioso: dirigia-se às pessoas, falava por alguns momentos e, como não lhe prestassem atenção, procurava outras com quem falar. Quando vi que tinha uma Bíblia na mão, compreendi tudo: ela se imaginava possuidora de conhecimentos sobre Deus que os outros não possuíam e tratava de salvar-lhes a alma.
Meu caminho me obrigou a passar perto dela e, quando olhei de perto para o seu rosto, levei um susto: eu o reconheci de outros tempos, quando era uma moça bonita que ria e brincava e para quem olhávamos com olhares de cobiça. Não resisti e chamei alto o seu nome. Ela se espantou, olhou-me com um olhar interrogativo, não me reconheceu. Com razão. Os muitos anos deixam suas marcas no rosto.
- Eu sou o Rubem!
Seu rosto se iluminou pela lembrança, sorriu, e pensei que poderíamos nos assentar e conversar sobre as nossas vidas. Mas preocupação dela com a minha alma não permitia essas perdas de tempo com conversa fiada. E tratou de verificar se o meu passaporte para a eternidade estava em ordem:
- Você continua firme na fé! – ela afirmou interrogativamente.
- Mas de jeito nenhum – respondi. – Então você deixou de ler a Bíblia? Pois lá está escrito que Deus é espírito, vento impetuoso que sopra em todo lugar, o mesmo vento que ele soprou dentro da gente para que respirássemos, fôssemos leves e pudéssemos voar. Quem está no vento não pode estar firme. Firmes são as pedras, as tartarugas, as âncoras. Você já viu um papagaio firme? Papagaio firme é papagaio no chão, não voa. Pois eu estou mais é como urubu, lá nas alturas, flutuando ao sabor do imprevisível Vento Sagrado, sem firmeza alguma, rodando em largos círculos.
Ela ficou perdida – acho que nunca tinha ouvido resposta tão estranha. Mudou de tática e tentou pegar a minha alma do outro lado. Desatou a falar de Deus, informou-me que ele é maravilhoso etc., como se estivesse no púlpito em celebração de domingo.
Refuguei:
- Acho que quem não está firme em Deus é você – eu disse. – Olha, passei a noite toda respirando, estou respirando desde que acordei e juro que agora é a primeira vez que penso no ar. Não pensei em nem falei no ar, porque somos bons amigos. Ele entra e sai do meu corpo quando quer, sem pedir licença. Mas a história seria outra se eu tivesse com asma os brônquios apertados, o ar sem jeito de entrar, ou como naquele anúncio antigo de xarope Bromil: O coitado do homem sufocado por uma mordaça, gritando pelo ar que lhe faltava. Por via das dúvidas até andaria com uma garrafa de oxigênio na bagagem, para qualquer emergência. Pois Deus é como o ar. Quando a gente está em boas relações com ele, não é preciso falar. Mas, quando a gente está atacado da asma, então é preciso ficar gritando por Deus. Do jeito como um asmático invoca o ar. Quem fala com Deus o tempo todo é asmático espiritual. E é por isso que anda sempre com Deus engarrafado em Bíblia e noutros livros e coisas de função parecida. Só que o vento não pode ser engarrafado...Justificar
Aí ela viu que minha alma estava perdida mesmo e, como consolo, fez um sinal de adeus e disse que oraria muito por mim. Então eu protestei, implorei que não o fizesse. Disse-lhe que eu tinha medo de que Deus ficasse ofendido. Pois há rezas e orações que são ofensas. É óbvio : se vou lá, bater às portas de Deus, pedindo que ele tenha dó de alguém, estou lhe imputando duas imperfeições que, se fosse comigo, me deixariam muito bravo. Primeiro, estou dizendo que não acredito no amor dele. Deve ser meio fraquinho, sem iniciativa, preguiçoso, à espera do meu cutucão. Se eu não der a minha cutucada, Deus não se mexe. E isso é coisa ofender Deus? Segundo, estou sugerindo que ele deve andar meio esquecido, desmemoriado, necessitando de um secretário que lhe lembre de suas obrigações. E trato de, diariamente, apresentar-lhe a sua agenda de trabalho. Mas está lá nos salmos e nos evangelhos que Deus sabe tudo antes que a gente fale qualquer coisa. Ora, se a gente fica no falatório, é porque não acredita nisso. Não acredito em oração em que a gente fala e Deus escuta. Acredito mesmo é na oração em que a gente fica quieto para ouvir a voz que se faz ouvir no meio do silêncio.
- Veja você. Tenho um filho que estudava longe. Eu gostava dele. Ele gostava de mim. De vez em quando a gente se falava pelo telefone. E o dinheiro da mesada ia sempre, com telefonema ou sem telefonema. Agora imagine: de repente começo receber telefonemas dele três vezes ao dia e mensagens por sedex, cartas e telegramas louvando o meu amor, agradecendo a minha generosidade... Você acha que isso me faria feliz? De jeito nenhum. Concluiria que o meu pobre filho havia endoidecido e estava acometido de um terrível medo de que eu o abandonasse. Pois é assim mesmo com Deus: quem fica o dia inteiro atrás dele, com falatório, é porque desconfia dele. Mas o pior é o gosto estético que assim se imputa a Deus. Uma pessoa que gosta de passar o dia inteiro ouvido os outros repetir as mesmas coisas , as mesmas palavras, as mesmas rezas, pela eternidade afora, não deve ser boa da cabeça. Para mim isso é inferno. Quem reza demais acha que Deus não funciona bem da cabeça. Acho que ele ficaria mais feliz se, em vez do meu falatório, eu lhe oferecesse uma sonata de Mozart ou um poema de Adélia...
Mas aí o alto falante chamou meu vôo, tive de me despedir e imagino que ela tenha ficado aflita, temerosa de que Deus derrubasse o meu avião com um raio. Mal sabia ela que Deus nem mesmo havia ouvido a nossa conversa, pois, cansado das doidices dos adultos, ele foge sempre que vê dois deles conversando e se esconde, disfarçado de criança.

do Livro, O infinito na palma da sua mão: o sonho divino ao nosso alcance/ Rubem Alves, Verus Editora, 2007.

sábado, 4 de julho de 2009

Reverência ao destino

Falar é completamente fácil, quando se tem palavras em mente que expressem sua opinião.
Difícil é expressar por gestos e atitudes o que realmente queremos dizer, o quanto queremos dizer, antes que a pessoa se vá.
Fácil é julgar pessoas que estão sendo expostas pelas circunstâncias.
Difícil é encontrar e refletir sobre os seus erros, ou tentar fazer diferente algo que já fez muito errado.
Fácil é ser colega, fazer companhia a alguém, dizer o que ele deseja ouvir.
Difícil é ser amigo para todas as horas e dizer sempre a verdade quando for preciso.
E com confiança no que diz.
Fácil é analisar a situação alheia e poder aconselhar sobre esta situação.
Difícil é vivenciar esta situação e saber o que fazer ou ter coragem pra fazer.
Fácil é demonstrar raiva e impaciência quando algo o deixa irritado.
Difícil é expressar o seu amor a alguém que realmente te conhece, te respeita e te entende.
E é assim que perdemos pessoas especiais.
Fácil é mentir aos quatro ventos o que tentamos camuflar.
Difícil é mentir para o nosso coração.
Fácil é ver o que queremos enxergar.
Difícil é saber que nos iludimos com o que achávamos ter visto.
Admitir que nos deixamos levar, mais uma vez, isso é difícil.
Fácil é dizer "oi" ou "como vai?"
Difícil é dizer "adeus", principalmente quando somos culpados pela partida de alguém de nossas vidas...
Fácil é abraçar, apertar as mãos, beijar de olhos fechados.
Difícil é sentir a energia que é transmitida.
Aquela que toma conta do corpo como uma corrente elétrica quando tocamos a pessoa certa.
Fácil é querer ser amado.
Difícil é amar completamente só.
Amar de verdade, sem ter medo de viver, sem ter medo do depois. Amar e se entregar, e aprender a dar valor somente a quem te ama.
Fácil é ouvir a música que toca.
Difícil é ouvir a sua consciência, acenando o tempo todo, mostrando nossas escolhas erradas.

Fácil é ditar regras.
Difícil é seguí-las.
Ter a noção exata de nossas próprias vidas, ao invés de ter noção das vidas dos outros.
Fácil é perguntar o que deseja saber.
Difícil é estar preparado para escutar esta resposta ou querer entender a resposta.
Fácil é chorar ou sorrir quando der vontade.
Difícil é sorrir com vontade de chorar ou chorar de rir, de alegria.
Fácil é dar um beijo.
Difícil é entregar a alma, sinceramente, por inteiro.
Fácil é sair com várias pessoas ao longo da vida.
Difícil é entender que pouquíssimas delas vão te aceitar como você é e te fazer feliz por inteiro.
Fácil é ocupar um lugar na caderneta telefônica.Difícil é ocupar o coração de alguém, saber que se é realmente amado.
Fácil é sonhar todas as noites.
Difícil é lutar por um sonho.
Eterno, é tudo aquilo que dura uma fração de segundo, mas com tamanha intensidade, que se petrifica, e nenhuma força jamais o resgata.
Carlos Drummond de Andrade

Pedaços do caminho