domingo, 25 de outubro de 2009

Achei que ausência era falta...

O Drummond escreveu um poema chamado “Ausência”. Não sei a propósito de quê – se era por causa de um amor perdido, de uma pessoa querida que estava longe – a saudade doía. E ele escreveu, para se explicar e consolar:

Por muito tempo achei que ausência era falta.
E lastimava, ignorante, a falta.
Hoje não a lastimo.
Não há falta na ausência.
A ausência é um estar em mim.
E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços,
Que rio e danço e invento exclamações alegres,
Porque a ausência, essa ausência assimilada,
Ninguém a rouba mais de mim.

É isto: a cena – presente diante dos meus olhos – faz acordar uma ausência na minha alma. Daí a minha tristeza mansa. O presépio me faz lembrar algo que tive e perdi. Essa ausência tem o nome de saudade. Eu não tenho saudade. É a saudade que me tem. Mora, dentro de mim, a “ausência” de um presépio. Saudade é sentimento de quem ama e perdeu o objeto do amor. Quem não amou e não perdeu o objeto do amor não sente saudade. Pode ficar alegrinho. As muitas celebrações alegres – não revelarão elas que os celebrantes não sofrem saudade? Celebram, talvez, porque na sua alma não mora a “ausência” de um presépio. Mas o que eu quero mesmo, mesmo, é fazer como o Drummond: aconchegar a minha saudade nos meus braços. Porque a saudade é um estar em mim. Assim, por favor, não tentem me consolar.
Vou transcrever um texto de Octávio Paz. É um dos meus textos favoritos. Por isso quero pedir que você o leia bem devagar. Contemple as vacas do presépio que ruminam sem pressa. Leia bovinamente, como quem rumina...

“Todos os dias atravessamos a mesma rua ou o mesmo jardim; todas as tardes nossos olhos batem no mesmo muro avermelhado feito de tijolos e tempo urbano. De repente, num dia qualquer, a rua dá para um outro mundo, o jardim acaba de nascer, o muro fatigado se cobre de signos. Nunca os tínhamos visto e agora ficamos espantados por eles serem assim: tanto e tão esmagadoramente reais. Não, isso que estamos vendo pela primeira vez, já havíamos visto antes. Em algum lugar, onde nunca estivemos, já estavam o muro, a rua, o jardim. E a surpresa segue-se a nostalgia. Parece que recordamos e queríamos voltar para lá, para esse lugar onde as coisas são sempre assim, banhadas por uma luz antiqüíssima e ao mesmo tempo acabada de nascer. Nós também somos de lá. Um sopro nos golpeia a fronte. Estamos encantado...Adivinhamos que somos de outro mundo”.

Octávio Paz está descrevendo uma experiência mística: quando, de repente, as coisas banais do cotidiano se abrem como portas, e somos levados a um outro mundo. Pode ser um perfume indefinível, pode ser uma fotografia que já vimos vezes sem conta, pode ser uma música vinda de longe... De repente experimentamos êxtase – estamos fora de nós mesmos, encantados -, somos transportados para um mundo que nem sabemos direito o que seja, Já estivemos lá. Não mais estamos. E vem a nostalgia. Queríamos voltar. A alma sempre deseja voltar. O mundo das novidades é o mundo do seu exílio.

Trecho das páginas 137,138,139 e 140 do Livro Se eu pudesse viver a minha vida novamente...
do brilhante escritor Rubem Alves.

segunda-feira, 12 de outubro de 2009

A terceira margem do Rio

O bom da literatura é que ela nos faz viajar por tempos e lugares aonde a gente nunca foi e nunca irá. Mesmo porque as coisas que existem na literatura não existem na realidade. A literatura tem poderes dos deuses: ela faz existir coisas que nunca existiram e chama as coisas que não são como se fossem. Veja só este fragmento de Bernardo Soares, uma das personalidades de Fernando Pessoa: “ O vapor em que parti chegou de vela ao porto. Que isso é impossível, dizeis. Por isso me aconteceu.” Aconteceu por ser impossível. Que é absurdo, é! Navios a vapor não se transformam em navios a vela ao meio da viagem. Mentira na realidade, verdade na literatura. As coisas que não existem são mais interessantes. E não é por isso que se invocam os deuses? O que não existe tem mais força. Acho que é por isso que o apóstolo João começou a sua estória dizendo que “no princípio era o verbo” e “o verbo era Deus”.

Bernardo Soares tinha um profundo desprezo pelas viagens e pelos viajantes. Dizia: “Que é viajar? Para que serve viajar? Qualquer poente é poente; não é mister ir vê-lo a Constantinopla. Nunca desembarcamos de nós. Quem cruzou todos os mares somente cruzou a monotonia de si mesmo.” Antigamente, os médicos prescreviam viagens como remédio para a depressão. Imaginavam que, viajando para outros lugares, a depressão ficaria para trás. Mas tristeza não desembarca. Viaja junto. Somos um baú cheio. Quando viajamos, o baú, com tudo o que está dentro, vai junto. Chegamos lá, abrimos o baú e nos pomos a representar a mesma comédia que representamos sempre.

Nos feriados é obrigatório viajar. Quem não viaja é um desgraçado. É sabido que todas as pessoas “normais” viajam. E todo mundo quer ser normal. Até já criaram a palavra normose para dar nome a essa perturbação de querer ser normal. Quem não viaja é ou por não ter dinheiro, ou por estar de plantão, ou por ter de cuidar de alguém doente. Não importa as explicações. Vale o fato bruto: não viajou.

Mas a literatura faz possível viajar por dentro sem ter de sair do lugar. Minhas maiores viagens, eu fiz pela leitura. E o que sou tem muito a ver com o que li. As viagens que eu fiz com o carro e avião só valeram pela literatura que nelas aconteceu, enquanto viajava. Não que eu escrevesse livros. Acho difícil escrever fora do meu lugar. Para escrever, minha alma tem que se sentir em casa. Fiz literatura pensando, escrevi livros na imaginação que nunca escrevi no papel.

O benefício de ficar em casa no feriado, quando todo mundo viaja, está em que não se corre o risco de ficar preso em uma pousada ouvindo o barulho da chuva que cai e vendo a neblina que tudo cobre, mascando tédio. Por via das dúvidas é sempre sábio levar um livro...

Trecho das páginas 142, 143 e 144 do Livro “Se eu pudesse viver minha vida novamente”...(Rubem Alves, Verus Editora, 2004)

Pedaços do caminho