domingo, 10 de janeiro de 2010

Vivendo e desaprendendo

Eu sabia fazer pandorga (pipa) e hoje não sei mais, duvido que se hoje pegasse uma bola de gude conseguisse equilibrá-la na dobra do dedo indicador sobre a unha do polegar, quanto mais jogá-la com a precisão que tinha quando era garoto. Outra coisa: Acabo de procurar no dicionário, pela primeira vez o significado da palavra “gude”. Quando eu era garoto nunca pensei nisso, eu sabia que gude era gude. Gude era gude.

Juntando-se duas mãos de um determinado jeito com os polegares para dentro, e assoprando pelo buraquinho, tirava-se um silvo bonito que inclusive, variava de tom conforme o posicionamento das mãos. Hoje não sei mais como é. Eu sabia a fórmula de fazer cola caseira. Algo envolvendo farinha e água e muita confusão na cozinha, de onde éramos expulsos sobre ameaças. Hoje não sei mais.

A gente começa a contar depois de ver um relâmpago e o número a que chegasse quando ouvia a trovoada, multiplicando por outro número, dava a distância exata do relâmpago. Não sei mais que número é esse.

Ainda no terreno dos sons: tinha uma folha que a gente dobrava e, se ela rachasse de um certo jeito, dava um razoável pistom em miniatura. Nunca mais encontrei a tal folha.

E espremendo-se a mão entre o braço e o corpo, claro tinha-se o chamado trombone axilar, que muito perturbava os mais velhos; não consigo mais tirar o mesmo som. É verdade que não tenho tentado com muito empenho.

Lembro o orgulho com o que consegui, pela primeira vez cuspir corretamente pelo espaço adequado entre os dentes de cima e a ponta da língua de modo que o cuspe ganhasse distância e pudesse ser mirado com prática, conseguia controlar a trajetória elíptica da cusparada com uma mínima margem de erro. Era puro instinto. Hoje o mesmo feito requeria complicados cálculos de balística e eu provável só acertaria a frente da minha camisa. Outra habilidade perdida.

Na verdade deve-se revisar aquela antiga frase, é vivendo e desaprendendo, não falo daquelas coisas que deixamos de fazer porque não temos mais condições físicas e a coragem de antigamente, como subir em bonde andando, mesmo porque não existem mais bondes. Falo da sabedoria desperdiçada das artes que nos abandonaram, algumas até úteis.

Quem nunca desejou ainda ter o cuspe certeiro de garoto para acertar em algum alvo contemporâneo, bem no olho? Eu já.

(Luis Fernando Veríssimo)

Um comentário:

  1. ADOREI!
    Esses dias mesmo eu quis lembrar daquele cálculo do trovão e do clarão, à toa. Mas o trombone axilar, esse eu ainda sei fazer! HAHAHAHAHAHAHAHAHAHA
    Beijos!!!!

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As mudanças são necessárias, claro, mas não se pode deixar de sentir um pouco de nostalgia - Afinal, ela é parte de nossa história. Sem essas lembranças é como se não existisse passado...

SEJAM BEM VINDO(S)!

Pedaços do caminho