segunda-feira, 12 de outubro de 2009

A terceira margem do Rio

O bom da literatura é que ela nos faz viajar por tempos e lugares aonde a gente nunca foi e nunca irá. Mesmo porque as coisas que existem na literatura não existem na realidade. A literatura tem poderes dos deuses: ela faz existir coisas que nunca existiram e chama as coisas que não são como se fossem. Veja só este fragmento de Bernardo Soares, uma das personalidades de Fernando Pessoa: “ O vapor em que parti chegou de vela ao porto. Que isso é impossível, dizeis. Por isso me aconteceu.” Aconteceu por ser impossível. Que é absurdo, é! Navios a vapor não se transformam em navios a vela ao meio da viagem. Mentira na realidade, verdade na literatura. As coisas que não existem são mais interessantes. E não é por isso que se invocam os deuses? O que não existe tem mais força. Acho que é por isso que o apóstolo João começou a sua estória dizendo que “no princípio era o verbo” e “o verbo era Deus”.

Bernardo Soares tinha um profundo desprezo pelas viagens e pelos viajantes. Dizia: “Que é viajar? Para que serve viajar? Qualquer poente é poente; não é mister ir vê-lo a Constantinopla. Nunca desembarcamos de nós. Quem cruzou todos os mares somente cruzou a monotonia de si mesmo.” Antigamente, os médicos prescreviam viagens como remédio para a depressão. Imaginavam que, viajando para outros lugares, a depressão ficaria para trás. Mas tristeza não desembarca. Viaja junto. Somos um baú cheio. Quando viajamos, o baú, com tudo o que está dentro, vai junto. Chegamos lá, abrimos o baú e nos pomos a representar a mesma comédia que representamos sempre.

Nos feriados é obrigatório viajar. Quem não viaja é um desgraçado. É sabido que todas as pessoas “normais” viajam. E todo mundo quer ser normal. Até já criaram a palavra normose para dar nome a essa perturbação de querer ser normal. Quem não viaja é ou por não ter dinheiro, ou por estar de plantão, ou por ter de cuidar de alguém doente. Não importa as explicações. Vale o fato bruto: não viajou.

Mas a literatura faz possível viajar por dentro sem ter de sair do lugar. Minhas maiores viagens, eu fiz pela leitura. E o que sou tem muito a ver com o que li. As viagens que eu fiz com o carro e avião só valeram pela literatura que nelas aconteceu, enquanto viajava. Não que eu escrevesse livros. Acho difícil escrever fora do meu lugar. Para escrever, minha alma tem que se sentir em casa. Fiz literatura pensando, escrevi livros na imaginação que nunca escrevi no papel.

O benefício de ficar em casa no feriado, quando todo mundo viaja, está em que não se corre o risco de ficar preso em uma pousada ouvindo o barulho da chuva que cai e vendo a neblina que tudo cobre, mascando tédio. Por via das dúvidas é sempre sábio levar um livro...

Trecho das páginas 142, 143 e 144 do Livro “Se eu pudesse viver minha vida novamente”...(Rubem Alves, Verus Editora, 2004)

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As mudanças são necessárias, claro, mas não se pode deixar de sentir um pouco de nostalgia - Afinal, ela é parte de nossa história. Sem essas lembranças é como se não existisse passado...

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